03 novembro 2005

Para os europeus, “o que certifica ou hipoteca a verdade de uma afirmação é sempre o próprio sujeito – aquele que toma a iniciativa e a responsabilidade de afirmar uma verdade –, enquanto para Doï [Takéo Doï, psicanalista japonês] e Nishida [Kitarô Nishida, filósofo japonês] o que hipoteca ou certifica a verdade é o carácter natural e espontâneo do seu surgimento.” Para a tradição japonesa, o movimento espontâneo das coisas é o princípio primordial do cosmos. Seguem-se três exemplos.
(1) Os caracteres chineses que compõem a palavra “shizen”, que se pode traduzir por “natureza”, podem ler-se em japonês de duas maneiras: “hitori suru”, que significa “fazer-se por si mesma (a natureza)”; “wareto suru”, que significa “fazer-se por si mesmo (cada um a si mesmo)”. Assim, hitori suru aplica-se aos movimentos do mundo e wareto suru às acções humanas, mas as duas coisas são apenas uma. O movimento espontâneo é em qualquer caso a natureza ou o princípio universal, sem intervenção de seres transcendentes ou humanos.
(2) Num filme japonês, uma jovem enfermeira diz a um médico: suki desu. Legendagem em francês: je vous aime (sujeito, verbo, complemento - embora aqui numa ordem irregular). Isso não corresponde, de todo, à expressão japonesa. Em japonês, suki desu não menciona qualquer pessoa; a expressão indica a existência de um sentimento de amor na situação; desu marca o facto de estarmos a dirigir-nos a uma pessoa de estatuto social superior; é assim que se torna compreensível o que a rapariga quer dizer.
(3) Na Bíblia, lê-se no princípio do Livro do Génesis que “Deus criou os céus e a terra”. No “Génesis japonês”, Kojiki ("Crónica das coisas antigas"), escrita no nosso século VIII por um historiador da corte imperial que coligiu as tradições orais da nação, lê-se: “No momento em que o céu e a terra se desenvolveram pela primeira vez, o nome do deus que se faz nos campos do céu era Améno-Minakanusubii-no-Kami.”
(Hisayasu Nakagawa, Introduction à la culture japonaise, capítulo “A verdade sem sujeito”.)