03 novembro 2005

O pequeno jardim do templo Koetsu-ji (Quioto)


As luxuriantes tonalidades do sangue do Outono.
Se cada estação é um mundo novo, como fazer para voltar a Quioto a cada mudança da natureza, para ver todas as faces?
Aqui residiu Honami Koetsu, um grande mestre da cerimónia do chá, de olaria, de caligrafia, descendente de uma família de fabricantes de espadas. Conjunto do século XVII.

Monumento funerário.
«Desde Meiji (1868), a lei obriga a incinerar todos os corpos em crematórios oficiais. Seguidamente recolhem-se os restos para os depositar numa urna que será enterrada sob uma pedra tumular.»
(Hisayasu Nakagawa, Introduction à la culture japonaise, p.23)

Para os europeus, “o que certifica ou hipoteca a verdade de uma afirmação é sempre o próprio sujeito – aquele que toma a iniciativa e a responsabilidade de afirmar uma verdade –, enquanto para Doï [Takéo Doï, psicanalista japonês] e Nishida [Kitarô Nishida, filósofo japonês] o que hipoteca ou certifica a verdade é o carácter natural e espontâneo do seu surgimento.” Para a tradição japonesa, o movimento espontâneo das coisas é o princípio primordial do cosmos. Seguem-se três exemplos.
(1) Os caracteres chineses que compõem a palavra “shizen”, que se pode traduzir por “natureza”, podem ler-se em japonês de duas maneiras: “hitori suru”, que significa “fazer-se por si mesma (a natureza)”; “wareto suru”, que significa “fazer-se por si mesmo (cada um a si mesmo)”. Assim, hitori suru aplica-se aos movimentos do mundo e wareto suru às acções humanas, mas as duas coisas são apenas uma. O movimento espontâneo é em qualquer caso a natureza ou o princípio universal, sem intervenção de seres transcendentes ou humanos.
(2) Num filme japonês, uma jovem enfermeira diz a um médico: suki desu. Legendagem em francês: je vous aime (sujeito, verbo, complemento - embora aqui numa ordem irregular). Isso não corresponde, de todo, à expressão japonesa. Em japonês, suki desu não menciona qualquer pessoa; a expressão indica a existência de um sentimento de amor na situação; desu marca o facto de estarmos a dirigir-nos a uma pessoa de estatuto social superior; é assim que se torna compreensível o que a rapariga quer dizer.
(3) Na Bíblia, lê-se no princípio do Livro do Génesis que “Deus criou os céus e a terra”. No “Génesis japonês”, Kojiki ("Crónica das coisas antigas"), escrita no nosso século VIII por um historiador da corte imperial que coligiu as tradições orais da nação, lê-se: “No momento em que o céu e a terra se desenvolveram pela primeira vez, o nome do deus que se faz nos campos do céu era Améno-Minakanusubii-no-Kami.”
(Hisayasu Nakagawa, Introduction à la culture japonaise, capítulo “A verdade sem sujeito”.)

Por vezes os deuses estão distraídos e devemos recorrer a grandes meios.


Dirigimo-nos já para Shisen-dô. Depois de mais uma transferência em autocarro, já nos aproximamos a pé. É dia feriado. Casa tradicional de uma zona agora limítrofe da cidade. Bandeira ao alto. Nacionalismo q.b.?


Como é sabido, os japoneses, além de simpáticos, convivem bem com as máquinas de fotografar.

«Na gramática japonesa não há artigos; os substantivos e adjectivos são invariáveis, independentes de género e de número; quase que não há pronomes pessoais; os tempos dos verbos são invariáveis, independentes de pessoas; não há sujeito gramatical na oração; de sorte que os fenómenos passam-se como que num mundo sem espectadores, sem testemunhas dos factos, visto que os indivíduos se eliminam propositadamente da cena; estranha coisa, que leva à compreensão da impersonalidade japonesa.»
(Wenceslau de Moraes, Relance da Alma Japonesa, 1926, p. 156 da edição Vega de 1999)

O eremitério de Shisen-dô (Quioto)

A cortina que protege o caminho de acesso ao refúgio que foi de Jôzan Ishikawa (1583-1672), filho de samurais, conselheiro do poder, arquitecto de paisagens, mestre de poesia chinesa e de caligrafia Reisho. Celibatário...


Entrada.


Não há eremita que passe sem alguma logística...


Em meados da primeira metade do século XVII, um princípio de combinação do jardim seco com o jardim de passeio.


Neste jardim seco temos areia em vez de gravilha - e temos uma vista aérea de uma das suas ilhas.


Sempre nos jardins há recantos onde se trocam abraços discretos.


A casa de chá, necessariamente singela, onde se há-de chegar já meio purificado pelo percurso no jardim.

O Pavilhão Prateado em Ginkaku-ji (Quioto)


Ginkaku-ji (c. 1480). Visão do conjunto em que se integra este Pavilhão Prateado, numa imagem do folheto disponibilizado aos visitantes.
Construído pelo shogun Ashikaga Yoshimasa como residência para o seu tempo de aposentado, transformou-se num templo budista após a sua morte.
"Prateado", não porque tenha essa cor - que não tem -, mas por deferência para com o construtor do Pavilhão Dourado, avô do construtor deste, a quem assim se reconhece a precedência.
Clicando aqui chega-se a um guia bastante completo do conjunto em que se integra o Pavilhão Prateado, com textos de enquadramento (em inglês) e imagens.


Encontramos, nos jardins de Ginkakuji, uma forma mais elaborada de pentear a gravilha no jardim seco.


Não peço mais do que um recanto assim em frente à minha mesa de trabalho.

O Monte Fuji, situado na zona central do país, sempre impressionou os japoneses pela sua forma geométrica quase pura (um cone). A arte reflecte esse facto.
Katsushika Hokusai, Vista através das vagas ao largo da costa de Kanagawa, c. 1830-1832 (do conjunto Trinta e seis vistas do Monte Fuji).


Katsushika Hokusai, O dragão de fumo saindo do Monte Fuji, 1849, pintura sobre seda (rolo para pendurar na vertical).
O fascínio pela forma geométrica quase pura do Monte Fuji vai reflectir-se num dos elementos mais fortes do jardim pertencente ao mesmo conjunto do Pavilhão Prateado.


O Monte Fuji, o rio, o mar. Aqui a gravilha retrata uma paisagem distante de forma quase ingénua. Naiveté esculpida na paisagem?


A ponte das boas-vindas aos imortais.
Temos neste espaço uma combinação pouco habitual de jardim seco com jardim de lago.


A qualquer momento, não houvera tanta gente, o arcanjo batia as asas para iniciar um breve voo.


O sector VIP da colecção de musgos. (Vejam bem: as palavras são deles.)


O Pavilhão dito Prateado.

Imagem do jardim, do Período Edo.


Uma rua, simplesmente.

O templo de Kiyomizu (Quioto)


Com toda essa gente, o que se pode ver? Que o suporte dessa enorme varanda depende apenas de encaixes de madeira.
Construção original entre 637 e 748; reconstrução em 1633.


No templo de Kiyomizu está a estátua da deusa Kannon, a "padroeira", mas só é exposta de 33 em 33 anos... e não calhou neste dia!


O ritual da purificação, sob o olhar, atento mas um tanto rígido, do dragãozinho.


Gueixas...ou não.
«Mas o que são as geisha? [...] São em geral filhas de lares de miséria extrema, e receberam do destino o privilégio de haverem nascido gentis, bonitas, cativantes. Qualquer indivíduo [...] adquire-as, ainda crianças, por adopção ou outro meio. As geisha começam então a receber, pouco a pouco, lentamente, uma educação particularíssima, complicadíssima e em parte delicadíssima; aprendem a tocar na perfeição um instrumento indígena, pelo menos, aprendem a cantar, aprendem a dançar, aprendem a vestir-se ricamente, de sedas magníficas, aprendem a ser agradáveis aos homens, quando convivas em banquetes, nas chaya (casas de chá), onde elas serão chamadas, pagas a tanto por cada hora, servindo então os mesmos convivas [...], enchendo-lhes de saké [...] as pequenas taças de porcelana, e finalmente tornando aprazível o tempo que decorre, mercê do seu papear gracioso, dos seus gestos - todos arte e gentileza -, das prendas que exibem - música, dança, canto -, tudo coroado pelo esplendor da sua beleza emocionante. Nada mais, e nada menos. Descer, ou subir a intimidades mais flagrantes, é-lhes defeso, pelos regulamentos da polícia e outras medidas. No Japão, em todas as classes sociais, ainda as mais distintas, quando se oferece um jantar a amigos, na chaya, é da praxe mandar chamar as geisha [...].»
(Wenceslau de Moraes, Relance da Alma Japonesa, 1926, p. 84 da edição Vega de 1999)